“Formação do professor é importante, mas não garante qualidade”
Um estudo recente encomendado pela Fundação Lemann e pelo Instituto Futuro Brasil indica que apenas 5% dos melhores alunos formados no ensino médio querem atuar como docentes do ensino básico. O dado, baseado no aproveitamento dos estudantes no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), é discutível, mas pode ser tomado como mais um indício do desprestígio da figura do professor no Brasil.
“Dentro da sala de aula, o professor está reclamando do seu salário, da falta de condições de trabalho, da falta de educação dos alunos, da falta disso, daquilo, sempre da falta. Como faz sentido para esses alunos seguir uma carreira em que só se mostra descontentamento?”, analisa a professora Regina Pedroza, do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). Ela ministra a disciplina Fundamentos de Desenvolvimento e Aprendizagem, que é freqüentada por todos os alunos de licenciatura da universidade.
Na entrevista abaixo, concedida à UnB Agência, a professora discute a validade de uma pesquisa baseada apenas nas notas dos considerados “melhores alunos”, mas corrobora a impressão de que é preciso valorizar o ofício do professor. “Não dá para querer que um professor seja capaz de sobreviver com o salário que anda recebendo. Mas tem muito mais para ser feito. Todo político fala sobre a importância da saúde e da educação, mas não existe uma política educacional no país”, reclama.
Regina ainda recorre ao passado para explicar a atual condição do professor no Brasil e diz que não existem bandidos e mocinhos nos atritos noticiados recentemente entre professores e alunos. E, apesar de tudo isso, aconselha aos estudantes a se tornarem professores: “Eu acredito que possa, como professora, participar da mudança do mundo”.
UnB AGÊNCIA – Segundo estudo recente encomendado pela Fundação Lemann e pelo Instituto Futuro Brasil, apenas 5% dos melhores alunos formados no ensino médio querem atuar como docentes do ensino básico. Por que a falta de interesse dos alunos?
REGINA PEDROZA – Antes de tudo, é preciso dizer que aí tem uma complexidade muito grande. É preciso discutir os parâmetros escolhidos para dizer quais são esses “melhores” alunos. Será que quem tira a melhor nota será o melhor professor? Nós estamos querendo antecipar uma escolha profissional para ainda mais cedo. A gente já faz isso quando o aluno escolhe sua profissão a partir do curso a que ele atende na universidade. Talvez estejamos falando de uma formação que privilegia os conhecimentos formais.
UnB AGÊNCIA – Que outra formação deveria ser levada em conta?
REGINA – Eu, por exemplo, trabalho com a formação da pessoa do professor. Minha tese de doutorado mostra a necessidade de trabalhar com a questão da personalidade. Não que exista uma personalidade de professor, mas eu trabalho com uma formação pessoal. Ela falta desde sempre na nossa formação enquanto sujeitos. Somos mais formados para uma lógica de um mercado de trabalho. Desde pequeno, na escola, nós somos formados para nos adaptar à sociedade. E essa sociedade é regida pela lógica do mercado, que exige que a pessoa seja competitiva, produtora, que tenha habilidades e competência voltadas para o lucro, para o que é a lógica da sociedade capitalista. Ao mesmo tempo, dizemos que também deveria haver uma formação da sensibilidade, de valores morais, de solidariedade, de ajuda mútua. Isso é contraditório.
UnB AGÊNCIA – Ainda assim, é possível dizer que os alunos não se vêem como professores no futuro.
REGINA – Há modelos de professores. Dentro da sala de aula, o professor está reclamando do seu salário, da falta de condições de trabalho, da falta de educação dos alunos, da falta disso, daquilo, sempre da falta. Como faz sentido para esses alunos seguir uma carreira em que só se mostra descontentamento? A gente só ouve a desvalorização dessa profissão de professor. A sociedade quer que a gente tenha sucesso. Na nossa sociedade, bem sucedido é que tem dinheiro, status. É quem tem, e não quem é. E o salário do professor não permite a ele ter muitas coisas.
UnB AGÊNCIA – Como chegamos a essa situação?
REGINA – Historicamente, quando surgiram as primeiras escolas no Brasil, os professores do ensino básico eram mulheres, que depois passaram a ser “tias”. Eram mulheres que não precisavam de um salário. A elas bastava essa oportunidade de sair de casa para ter uma profissão. É uma profissão que, na Grécia antiga, era dos escravos. Os tutores da nobreza eram propriedades do senhor. Mas o que diferencia o Brasil dos outros países é a estupidez da diferença entre classes sociais. Nós não encontramos problemas em escolas particulares. É difícil pensar que apenas 5% da população brasileira têm acesso à educação. E a maioria está onde os professores têm menos condições. É mais fácil dar aula para filho de classe média do que ir para uma escola em que o menino vem mal vestido.
Daiane Souza/UnB Agência
“O que diferencia o Brasil dos outros países é a estupidez da diferença entre as classes sociais”
UnB AGÊNCIA – Como valorizar os docentes? Basta aumentar o salário?
REGINA – Não. Aumentar o salário com certeza é importante. Não dá para querer que um professor seja capaz de sobreviver com o salário que anda recebendo. Mas tem muito mais para ser feito. Por exemplo: todo político fala sobre a importância da saúde e da educação, mas não existe uma política educacional no país. É preciso um compromisso político-pedagógico. Na UnB, houve um momento, durante a criação dos cursos noturnos, em que se falou na importância de criar as licenciaturas. E isso aconteceu. Mas não basta criar só o curso de licenciatura, até porque muitas das pessoas que vieram fazer os cursos noturnos não querem ser professores, e não têm outra opção no mesmo horário. Eu acredito que uma política pedagógica dentro das universidades e dos centros de formação do professor poderia dar sentido para que uma pessoa optasse pela profissão, acompanhado de salário, de condições de trabalho.
UnB AGÊNCIA – E as universidades têm contribuído para melhorar a situação?
REGINA – A desvalorização existe também dentro da universidade. Em áreas como Matemática, Física e Química, há um preconceito contra quem vai para a área de licenciatura, para ser professor, em vez de ir para a área de pesquisa. Essa pessoa é vista como mais fraca. Porque quem produz conhecimento é o pesquisador, não o professor – apesar de nós podermos pensar o professor como um pesquisador. Além disso, ainda há uma distinção entre professores da graduação e da pós-graduação. Na UnB, ainda existem vários professores que atuam nos dois âmbitos, mas há muitos lugares onde os professores nem querem mais dar aula na graduação. Saiu um comparativo recentemente que diz que as universidades brasileiras produzem tanto quanto as mexicanas, mas, na atuação e nos índices do ensino fundamental, o Brasil cai. São professores mal formados, e principalmente leigos. A formação no Brasil é péssima, mas é preciso ver quais são as condições. Por outro lado, há pessoas que, nessas condições, se tornam bons professores. Garantir um conteúdo de informação é extremamente necessário, mas não é suficiente para garantir uma boa formação.
Daiane Souza/UnB Agência
“É difícil pensar que apenas 5% da população brasileira têm acesso à educação”
UnB AGÊNCIA – Como melhorar a formação do professor?
REGINA – Como estabelecer o que seria uma boa formação? A formação do professor é extremamente importante, mas apenas ela não garante a qualidade. A gente precisa de políticas públicas que possam começar a mudar essa visão do que é ser professor. No primeiro dia de aula da minha disciplina, eu peço para os alunos escreverem uma redação cujo tema é “por que ser ou não ser professor”. O resultado é muito interessante, porque a maioria dos meus alunos está na licenciatura, mas não quer ser professor. Muitos têm até possibilidade de escolha, pegam a licenciatura como segunda opção, para valorizar o currículo, mas não querem ser professores. Essa discussão da formação do professor tem que ser retomada.
UnB AGÊNCIA – A criação de bolsas de iniciação à docência pela Capes pode alterar essa mentalidade?
REGINA – É um começo. Quem sabe, dar uma bolsa incentive os estudantes a trabalhar com a licenciatura. Na UnB, nós já demos um passo muito grande com as bolsas de extensão. Ainda mais porque a universidade não tem dinheiro e a bolsa facilita o deslocamento dos alunos. Ensinar é permitir, a partir de possibilidades que você apresenta, que o outro vá em busca do seu próprio aprendizado.
UnB AGÊNCIA – A Delegacia da Criança e do Adolescente na Ceilândia registra seis agressões e ameaças por semana contra os docentes nas cidades de Ceilândia e Taguatinga. Recentemente, os espancamentos de alguns professores ganharam notoriedade nos jornais. Existem culpados nessas histórias?
REGINA – Não. Para mim, não existem bandidos ou mocinhos. Com toda essa complexidade da nossa sociedade, com essas diferenças sociais, como se pode falar de uma violência ou não? A questão é relacional. Que condições o professor encontra em Ceilândia e que condições o professor encontra em uma escola particular do Plano Piloto? Isso tem que ser explicitado, mas tem que ser analisado criticamente, em busca de algo para ser colocado no lugar. Passamos por um momento de denúncia, de preconceitos.
Daiane Souza/UnB Agência
“Qual é a perspectiva de vida do aluno que bate no professor?”
UnB AGÊNCIA – O professor brasileiro é respeitado?
REGINA – Não. Por uma série de problemas. Paulo Freire falava: “professora, sim, tia não”. E perguntava: “você já viu alguma passeata de tias? Alguma tia reivindicando salário?”. Está no imaginário das pessoas que ser professor é um sacerdócio, uma vocação. Mas agora não dá mais para se sustentar nessa doação toda. Todo mundo merece respeito. Todos somos seres humanos e temos que ser dignos de respeito. Todo mundo, inclusive os alunos. A violência vem do aluno, mas também pode vir do professor. A violência começa pela discriminação. Qual é a perspectiva de vida desse aluno que bate no professor? E eu já presenciei professora jogando apagador em cabeça de menino de sete anos de idade. É culpa da professora? Não. É culpa de todo um contexto em que ela está. Ela não tem condições de trabalho. Está em um estresse tão grande, que é capaz de fazer isso. E esse não foi o único incidente que eu presenciei.
UnB AGÊNCIA – Que motivos daria para um jovem ser professor hoje?
REGINA – Digo para todos os meus alunos que sejam professores. Falo tanto que, durante as colações de grau, alguns deles que decidem não seguir essa carreira vêm me dar satisfação. Ninguém precisa ser professor. Mas, lembrando as palavras de Paulo Freire de novo, eu “não gostaria de ser homem ou ser mulher sem a possibilidade de mudar o mundo”. E eu acredito que possa, como professora, participar da mudança do mundo.
Fonte: UnB Agência