23 de junho de 2008

José Saramago compara leitura de Borges a ´fisioterapia´

Jorge Luis Borges em uma de suas imagens mais conhecidas

José Saramago declarou, em evento na noite de sexta-feira, que o escritor argentino Jorge Luis Borges é “um gênio” e “um fisioterapeuta”, na medida em que ler sua obra põe em funcionamento tudo o que existe no corpo humano, “o que dá boa saúde”.

O Nobel de Literatura intervinha durante a sessão “E se falássemos de Borges?”, que aconteceu na Biblioteca Nacional de Portugal, com a presença da viúva do escritor argentino, María Kodama, e de Carlos da Veiga Ferreira, editor da Teorema, que tem publicado quase toda a obra de Borges no país ibérico.

Saramago, cujo conto favorito de Borges é Pierre Menard, autor do Quixote, abriu a sessão lendo o poema Elegia, uma “quase autobiografia que o escritor argentino escreveu em Bogotá, Colômbia, em 1963”, dando depois início a um diálogo em castelhano com María Kodama.

De acordo com a viúva de Borges, “foi a tradução dos contos que deu projeção internacional a Jorge Luis, mas ele sempre se sentiu poeta e sua prosa é poética”.

– Ele queria vir a ser recordado como poeta e tinha sempre a preocupação de nunca chegar a escrever ‘o poema’ – revelou María Kodama.

“Ele começou a escrever contos após um acidente em que receou ter perdido o talento para a poesia” e só voltou a trabalhar com ela também por questão de saúde. Com a perda da visão, Borges voltou aos poemas, “já que o fato de serem menores facilitava a memorização até serem passados para o papel”, contou María Kodama.

Paixão precoce

Recordando o marido como “uma pessoa encantadora, divertidíssima e muito delicada no trato com os outros”, a viúva de Jorge Luis Borges contou ao público que tinha 5 anos quando conheceu seu trabalho, apresentado por uma professora de inglês.

– Os psicólogos dizem que, aos 5 anos, podemos nos apaixonar pela primeira vez, por isso acredito que me enamorei de Borges na altura em que li aqueles poemas sobre sedução – revelou.

Em resposta a perguntas de José Saramago, María Kodama falou sobre a relação de Borges com a política – terreno onde foi chamado “de traidor e de vidente” -, com a violência e com os dois países que mais o marcaram: a Argentina, onde nasceu, e a Suíça, onde morreu e permanece sepultado.

– Ele tinha uma relação ambivalente com a Argentina pois, embora gostasse do país, via nele defeitos que o faziam sofrer, ao passo que admirava nos suíços a capacidade de trabalharem juntos para um fim comum, não obstante falassem idiomas distintos e tivessem diferentes religiões – afirmou María Kodama.

– No fundo, ele acreditava que aquela sociedade era um exemplo do que podia ser o mundo se todas as pessoas fossem tolerantes e convivessem pacificamente com quem é diferente – acrescentou a viúva.

Novamente interpelada por Saramago, que expressou perplexidade por um homem “tímido e pacífico como Borges ter escrito alguns contos de extrema violência”, a viúva explicou que a família do escritor “foi perseguida pelo ditador [Juan Manuel de] Rosas”.

– De pequeno, Jorge ouviu muitos relatos violentos sobre essas perseguições e, mais tarde, viu matarem um homem no Uruguai. Foram episódios que o marcaram vivamente e que ele exorcizou através da escrita – revelou.

Elogios

José Saramago considerou Borges “um gênio” e defendeu que vale sempre a pena redescobrir “todo o universo que Borges criou e ao fundo do qual nunca será possível chegar, porque Borges não tem fundo”.

Saramago também não quis despedir-se sem elogiar María Kodama, “para quem o calvário começou com a morte de Borges e que tem mostrado uma enorme valentia e um espírito de missão na defesa de sua obra, suportando calúnias e rejeitando subornos morais e materiais”.

Na sessão de sexta, estiveram presentes a vice-ministra portuguesa da Cultura, Paula Fernandes dos Santos, o embaixador da Argentina em Portugal, Jorge Faurie, e o escritor Rui Zink, entre outras figuras públicas.

A iniciativa foi organizada pela Fundação José Saramago em colaboração com a Biblioteca Nacional e com o apoio da editora Teorema, e será seguida por debates sobre outros escritores.

Fonte: Correio do Brasil (com Ag. Lusa)